quinta-feira, 16 de maio de 2013

VANESSA FERNANDES

«O que correu mal a Vanessa Fernandes?

Sem­pre à morte, Vanessa?

Em nen­huma estrada de Por­tu­gal há tan­tos ciclis­tas como na que liga Arcoz­elo aos Car­val­hos, no con­celho de Gaia. São de todas as idades e tipos, mas prin­ci­pal­mente homens para cima dos 50 anos ped­a­lando bici­cle­tas de com­petição e enver­gando capacetes, calções de licra, blusas jus­tas e sap­atil­has espe­ci­ais. Vê-se que há a febre do ciclismo à volta de Per­os­inho e isso só pode ter uma expli­cação: Vences­lau Fernandes.

O “velho Lau”, como lhe chamavam quando era novo, tem uma loja e uma ofic­ina de bici­cle­tas na rua 25 de Abril, no cen­tro da vila. De fato-macaco azul, cabelo branco com­prido e des­gren­hado, é lá que passa a maior parte dos seus dias, a vender e a con­ser­tar bici­cle­tas. Não manda emb­ora nen­hum cliente, ainda que este­jam out­ros à espera e já sejam 10 ou 11 da noite. E nunca deixa de lhes explicar as ver­tentes  mais sub­tis dos prob­le­mas mecâni­cos das suas bici­cle­tas. Mesmo que isso implique não lhes vender uma roda, mas ape­nas sub­sti­tuir os cubos ou a cas­sete de cremalheiras.

Na ofic­ina de Vences­lau, o rádio está sem­pre sin­tonizado na Renascença, e tanto pode pas­sar música como uma missa inteira, com a Avé Maria rezada em coro pelos fiéis numa igreja. Num caso ou noutro, Lau não pára de falar. Tem sem­pre assunto e um grande orgulho nisso. “Se eu começasse a contar-lhe todas as min­has histórias”, diz ele, “ficaríamos até de manhã e nem daríamos pelo pas­sar das horas, porque são coisas tão inter­es­santes que temos sem­pre von­tade de ouvir mais”.

Vences­lau Fer­nan­des, o antigo ciclista que par­ticipou 22 vezes na Volta a Por­tu­gal e gan­hou uma, em 1984, é uma figura incon­tornável em Per­os­inho. Além da ofic­ina de bici­cle­tas, fun­dou um clube de tri­atlo e treina jovens atle­tas. E out­ros não tão jovens. Nos cir­cuitos que orga­niza pelas estradas da região par­tic­i­pam ciclis­tas de todas as categorias.

Nesta manhã de domingo de Junho, por exem­plo, o per­curso vai de Per­os­inho a Ovar, Furadouro, Oliveira de Azeméis, S. João da Madeira, Estar­reja… uns 100 quilómet­ros que Vences­lau, de 66 anos, vai ped­alar em ritmo de cor­rida, ao lado do filho, Vences­lau júnior, de 15 anos, que se prepara para o Campe­onato Nacional de Ciclismo do fim-de-semana seguinte, e um grupo de ciclis­tas ado­les­centes e outro de séniores. E ainda de uma con­vi­dada espe­cial, a mesma que surge nos pósteres e arti­gos de jor­nais afix­a­dos por toda a ofic­ina e andava há muito afas­tada destas cor­ri­das. “Redorde de vitórias”  é o título de um dos arti­gos na parede. Outro diz: “O mundo a seus pés”.

Vences­lau Fer­nan­des é o segundo habi­tante de Per­os­inho mais famoso do mundo. O primeiro é a sua filha mais velha, Vanessa Fernandes.

Vanessa está aqui em seg­redo. Teori­ca­mente, afastou-se das com­petições e treinos e refugiou-se algures numa estân­cia longín­qua e descon­hecida. Na real­i­dade, está há meses inter­nada num cen­tro de recu­per­ação para doentes com­pul­sivos, no cen­tro do país. Veio pas­sar uma sem­ana a casa, mas vai voltar para a clínica, onde ficará mais um mês.

Cor­tou a comu­ni­cação com todo o seu pas­sado, os cole­gas e os ami­gos. Não atende o tele­fone, não fala a jor­nal­is­tas, e até os con­tac­tos com a família têm sido espaça­dos e cur­tos. Foi entregue a uma equipa mul­ti­dis­ci­pli­nar de cerca de 20 ele­men­tos, chefi­ada pelo treinador de atletismo Paulo Colaço e o psicól­ogo E. S., e acom­pan­hada pelos pais, Vences­lau e Her­mí­nia Fer­nan­des, e o pres­i­dente da Fed­er­ação de Tri­atlo, José Luís Ferreira.

O trata­mento a que está sub­metida é inten­sivo e inte­grado, mas ao mesmo tempo Vanessa Fer­nan­des está a treinar. Segundo Paulo Colaço, o objec­tivo é ape­nas man­ter a forma física e um nível de preparação que per­mita à ex-atleta voltar à alta-competição se e quando quiser.

No entanto, o seu ritmo de três treinos por dia, de cor­rida, natação e ciclismo, tem vol­ume e inten­si­dade con­sen­tâ­neos com uma preparação para par­tic­i­par já nos próx­i­mos Jogos Olímpi­cos, em 2012, em Londres.

***

Muito poucos atle­tas no mundo gan­haram tan­tas medal­has tão jovens e em tão pouco tempo como Vanessa Fer­nan­des. Começou a par­tic­i­par em campe­onatos europeus de juniores aos 16 anos, pouco depois de ter ido viver para o Cen­tro de Alto Rendi­mento (CAR) do Jamor, por con­vite da Fed­er­ação de Tri­atlo de Por­tu­gal, e aos 17 obteve a primeira medalha europeia de bronze. Em 2003, com 18 anos, era campeã europeia júnior, mas já há um ano que par­tic­i­pava nas com­petições a Taça do Mundo de elites. Ainda tinha 18 anos quando gan­hou a sua primeira com­petição da Taça do Mundo de elites, em Madrid. Em 2004 ficou em 8º lugar nos Jogos Olímpi­cos de Ate­nas, e a par­tir daí começou a colec­cionar vitórias no cir­cuito da Taça do Mundo. Em 2006 foi segunda nos Mundi­ais de Lau­sanne, e em 2007 tornou-se campeã do Mundo. Entre 2006 e 2007, aliás, gan­hou 20 medal­has de ouro em com­petições de alto nível. Taças do Mundo gan­hou, ao todo, 20. Além de 4 vitórias no Campe­onato da Europa de sub-23, e duas nos campe­onatos do Mundo de Duatlo. Só no ano de 2006, o mais pro­du­tivo da sua car­reira, con­quis­tou onze vitórias, 6 das quais em Taças do Mundo.

Em 2008 obteve a medalha de prata nas Olimpíadas de Pequim, e depois começou a crise. Ofi­cial­mente, teve várias lesões e prob­le­mas de moti­vação. Os resul­ta­dos pio­raram. Em 2009 decidiu aban­donar o CAR e regres­sar a casa, em Per­os­inho. Rompeu com Sér­gio San­tos, o treinador da Fed­er­ação, com quem tinha ganho tudo, e começou a tra­bal­har com Paulo Colaço, um téc­nico do Porto.

Mas os resul­ta­dos desportivos não mel­ho­raram. A moti­vação para o treino tam­bém não. Ten­tou ter uma vida nor­mal, divertir-se, ter ami­gos e paixões, como qual­quer jovem, mas tam­bém isso não cor­reu bem.

Em Fevereiro deste ano anun­ciou o aban­dono da prática desportiva de alta-competição. Pouco depois foi inter­nada e não mais se ouviu falar dela.

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Vanessa nasceu em 1985, um ano depois de o pai ter ganho a Volta a Por­tu­gal. Vences­lau estava no seu auge desportivo. Con­tin­uou a par­tic­i­par em muitas provas, incluindo a Volta, e a mul­her con­tin­uou a acompanhá-lo. Depois do casa­mento, Her­mí­nia deixara a sua terra, S. João de Ver, perto de Sta Maria da Feira, onde tra­bal­hava numa fábrica de rol­has, para viver em Per­os­inho, onde não tinha família nem con­hecia ninguém. Deixou de tra­bal­har e aborrecia-a ficar soz­inha em casa quando o marido ia para as provas, por isso seguia-o sem­pre que podia. Prin­ci­pal­mente na Volta a Por­tu­gal e na sua etapa mais famosa e mais ani­mada: a da Serra da Estrela. Bebé, na alcofa, Vanessa ia também.

Era uma festa. Her­mí­nia cos­tu­mava levar as irmãs, e os respec­tivos mari­dos, que inte­gravam a claque de Lau e dos irmãos António, José e Leonel, que tam­bém com­petiam na cor­rida. Os apoiantes ficavam todos acam­pa­dos, enquanto os corre­dores se insta­lavam num hotel. As mul­heres coz­in­havam canja e out­ros ali­men­tos para os atle­tas, os homens con­tribuíam de outra forma. Naquela época, era cos­tume (e per­mi­tido) que os ami­gos de cada corre­dor o aju­dassem no troço mais difí­cil da etapa, empurrando-o pela subida da Torre.

Formavam-se grandes gru­pos de “empurras”, que se assum­iam como rivais uns dos out­ros e se envolviam em colos­sais cenas de pan­cadaria.  “Nós ficá­va­mos doentes de emoção”, recorda Her­mí­nia, que ainda não tinha 30 anos.

Vences­lau tinha 40 quando Vanessa nasceu, 39 quando gan­hou a Volta pela primeira e última vez. É um luta­dor. Um homem seco e rijo, que olha o inter­locu­tor nos olhos e irra­dia jovi­al­i­dade e amar­gura ao mesmo tempo. Um homem simul­tane­a­mente andrógino e viril, agres­sivo e doce. “A der­rota não é de quem chega atrás. É de quem não se esforça para con­seguir”, diz. “Com­peti­mos sem­pre connosco próprios. Os adver­sários não são nos­sos inimi­gos. Sem adver­sários não con­seguiríamos ter sucesso”.

Nasceu muito pobre. Era o mais velho de sete irmãos, e aos 5 anos teve de começar a tra­bal­har, car­regando ces­tos de terra para as obras. Gan­hava 25 tostões por dia. Depois começou a levantar-se mais cedo, antes das seis da manhã, para aju­dar o padre a preparar a missa. Com isto jun­tava mais 25 tostões. Aos 6 anos entrou para a escola, que acu­mu­lou com os dois “empre­gos”, e ainda mais um, a par­tir dos 9 anos: tra­bal­har como trolha, no Porto, para onde ia todas as tardes a pé, 30 quilómet­ros ida e volta. O din­heiro que gan­hava entregava-o quase todo à mãe.

Com o pai, gostava de ir ver os ciclis­tas da Volta a Por­tu­gal a pas­sarem pelos Car­val­hos, e, aos 11 anos, tinha poupado din­heiro para com­prar a primeira bici­cleta, ao tio Custó­dio, que emi­grara para a Venezuela. Entrou numa cor­rida, no Porto, mas caiu, par­tiu a bici­cleta e teve de desi­s­tir. Con­tin­uou a ten­tar. Aos 20 anos, com um emprego das 7h30 da manhã às 8 da noite, con­seguiu par­tic­i­par pela primeira vez na Volta a Por­tu­gal. Ficou em último lugar.

Tra­bal­hou numa fábrica e depois numa ser­ral­haria, onde com­pen­sava, com horas de tra­balho noc­turno, as que gas­tava de dia com os treinos. Em 1966, com 21 anos, ficou em 32º na Volta. E con­tin­uou, até que em 1970 o Cen­tro de Med­i­c­ina Desportiva do Porto lhe detec­tou um sopro no coração e o con­siderou inca­paz para a prática desportiva.

Foi para França tra­bal­har na con­strução civil. Mas regres­sou no ano seguinte, para ten­tar outra vez a Volta. Submeteu-se a novos exames de várias jun­tas médi­cas, e só no próprio dia do iní­cio da prova con­seguiu a aprovação, no Hos­pi­tal de S. João do Porto. Cor­reu para Cam­panhã, apan­hou o com­boio e chegou a tempo de alin­har na par­tida. Esgo­tado e ser ter comido o dia todo, ficou em último na etapa. Chegaria ao fim em 11º lugar.

Con­tin­uou a con­cor­rer, sem nunca gan­har. Aos 35 anos começou a ser con­hecido pelo “velho Lau”. Ciclis­tas como Joaquim Agostinho e Marco Cha­gas fiz­eram na mesma época as suas car­reiras bril­hantes, deixando Vences­lau na sua som­bra. Mas ele esperou pacien­te­mente, e sobreviveu-lhes. Em 1984, aos 39 anos, o “velho Lau” ganha final­mente a Volta. “Deixem-me abraçar este momento”, disse ele aos jornalistas.

Em 1987 já era o ciclista mais velho do mundo em provas profis­sion­ais por eta­pas, mas pare­cia que a sua car­reira mal tinha começado. Em 1990, com 45 anos, caiu da bici­cleta, foi lev­ado de ambulân­cia, que teve um aci­dente, ferindo Vences­lau outra vez. Em 1991, com 46 anos, lá estava ele na sua 22ª Volta a Por­tu­gal. Ficou em 69º lugar e não con­cor­reu mais. Foi con­ven­cido a parar, con­tra a sua von­tade, sob a ameaça de ver can­ce­lada a sua licença desportiva.

***

Nessa altura Vanessa tinha 6 anos e já uma notória destreza física. O pai inscreveu-a na natação, no Sport­ing de Espinho, com o objec­tivo de lhe pro­por­cionar uma for­mação desportiva com­pleta. Aos 3 anos comprara-lhe a primeira bici­cleta, com rod­in­has, e aos 4 ela já usava para ir de casa para a ofic­ina, que fica a cerca de um quilómetro.

“Vamos fazer uma cor­rida?” desafi­ava ela. “Daqui até ali”. Cor­riam e Vences­lau tinha de a deixar gan­har, ou ela ficara incon­solável. Sem­pre foi assim. Sem­pre gos­tou de ganhar.

Fez a escola primária em Per­os­inho, mas depois, como na vila não havia secundário, foi para os Car­val­hos. Foi lá que começou a par­tic­i­par em provas esco­lares de atletismo. Com 9 anos, o pai levou-a a um pro­fes­sor de atletismo na Maia, que ficou sur­preen­dido com ela e a fez entrar em várias provas. Vanessa tomou-lhe o gosto. Ia ao Porto, a Braga, a Aveiro, cor­ria e ganhava.

Que­ria par­tic­i­par em tudo. Um dia fez uma prova de atletismo na Maia, de manhã. Mas que­ria tam­bém entrar numa de natação, num campe­onato em Aveiro, à tarde. Vences­lau levou-a de moto, ela com a sua mochila, ansiosa por gan­har mais uma competição.

Gostava de atletismo, emb­ora fizesse tam­bém ciclismo com o pai, e natação, que ele con­sid­er­ava uma boa activi­dade para a forma física. “É impor­tante para qual­quer atleta”, explica. “Eu sem­pre disse aos meus fil­hos: o mel­hor inves­ti­mento que vocês podem fazer é na vossa saúde. Por isso sem­pre quis que eles desde cedo prat­i­cas­sem várias modal­i­dades, não para que viessem a ser atle­tas de alta-competição, mas para que tivessem uma for­mação com­pleta. Porque eu dei uma boa for­mação aos meus fil­hos. Não andei a dormir”. Além do desporto, Vanessa fre­quen­tou a Escola de Música de Per­os­inho, a apren­der flauta trans­ver­sal. Vânia, a irmã mais nova, apren­deu violino.

Mais tarde, esta edu­cação mul­ti­fac­etada seria apon­tada como uma das causas do génio desportivo de Vanessa Fer­nan­des. Além, obvi­a­mente, dos fac­tores genéti­cos — as car­ac­terís­ti­cas físi­cas e, sobre­tudo, psi­cológ­i­cas her­dadas de Venceslau.

Quando Vanessa tinha 13 anos, apare­ceu lá na loja um amigo do pai, José Mariz, diri­gente do Bele­nenses, que desafiou Vences­lau a levar a filha a uma prova de tri­atlo, em Peniche. Vanessa nem sabia o que isso era. “Teatro? Ok, vamos lá fazer isso”.

Vences­lau arran­jou uma bici­cleta e, na véspera da prova, foram treinar. Na fúria de ultra­pas­sar o pai, Vanessa meteu a roda dianteira na vala de uma obras, caiu e ficou cheia de nódoas negras. Mas não quis desi­s­tir. Às 5 da manhã Vences­lau foi buscá-la à cama, e levou-a ao colo para o carro, a dormir. Chegaram a Peniche às 8.

Era uma prova nacional com 200 atle­tas, 750 met­ros de natação, 20 quilómet­ros de bici­cleta e 5 de cor­rida. A ondu­lação do mar estava tão forte, que Vences­lau chegou a pen­sar proibir a filha de entrar. Mas lá lhe expli­cou as regras e ela foi. No fim da prova de natação, ele viu sair da água três homens e depois uma rapariga. Vinha trans­fig­u­rada, nem a recon­heceu, pare­cia estrangeira. Mas era ela, Vanessa.

Mon­tou na bici­cleta e ele foi atrás na sua, que tinha escon­dida, porque era proibido acom­pan­har os atle­tas. Vanessa com­ple­tou tudo em 1º lugar, na sua cat­e­go­ria. Na geral ficou em 2º. Vences­lau com­preen­deu logo. “Se quis­eres ficar no tri­atlo, não perdes uma prova”, disse à filha. Não vejo adver­sários para ti”.

***

Vanessa ficou. Começou a par­tic­i­par em provas, a gan­har e a dar nas vis­tas. Aos 15 anos foi con­vi­dada pela Fed­er­ação de Tri­atlo a entrar para o Cen­tro de Alto Rendi­mento do Jamor. Inter­nada nas insta­lações espe­ci­ais anexas ao Está­dio Nacional, ela pode­ria dedicar-se inteira­mente ao treino, usufruindo da pista e piscina olímpica, e de uma equipa téc­nica de alto nível.

Her­mí­nia e Vences­lau vac­ila­ram. Achavam que ela era demasi­ado jovem. Mas Vanessa estava fasci­nada com a ideia. Pediu, chorou, e acabou por ir. Os pais impuseram algu­mas condições. As prin­ci­pais eram que con­tin­u­asse a fre­quen­tar a escola e as aulas de música. Foi-lhes garan­tido que sim.

Em Setem­bro de 2001 Vanessa estava a viver no CAR, matric­u­lada na Escola Secundária de Linda-a-Velha e treinada por Sér­gio San­tos, o direc­tor téc­nico nacional. Formou-se um grupo pequeno de atle­tas (três rapari­gas e qua­tro ou cinco rapazes), entre os quais Vanessa era a mais nova, e foi cri­ado um ambi­ente de tra­balho ideal.

O treino era intenso, con­cen­trado e bem con­duzido, e os resul­ta­dos não tar­daram a apare­cer. Vanessa gan­hava. Esforçava-se, cumpria, concentrava-se, e, onde quer que fosse, ganhava.

O pro­gresso foi veloz e espec­tac­u­lar, o que provo­cou uma eufo­ria e uma ver­tigem. “Em atle­tas muito jovens, a evolução é muito ráp­ida”, explica Sér­gio. “Os objec­tivos são atingi­dos rap­i­da­mente, o que gera um grande entusiasmo”.

Vanessa sen­tia que o seu tra­balho pro­duzia efeitos ime­di­ata­mente, e por­tanto dava o máx­imo. Nos primeiros anos teve bons resul­ta­dos, mas a par­tir de 2003 era a mel­hor. “Ela tinha uma aura de gan­hadora”, conta Maria Are­osa, atleta de tri­atlo que entrou para o CAR na mesma altura, emb­ora seja um ano mais velha. “Ela sabia sem­pre que ia gan­har. Chegava à prova e pen­sava assim: o primeiro lugar é meu, vocês dis­putam os out­ros. E com toda aquela força men­tal, as out­ras olhavam para ela e já tin­ham perdido”.

Vanessa era tão con­fi­ante, que não se deix­ava intim­i­dar por nada. Maria lembra-se de um dos primeiros campe­onatos inter­na­cionais em que par­tic­i­param as duas, em Lugo. Todas as out­ras atle­tas eram mais vel­has. “Está­va­mos cheias de medo, mas a Vanessa não. Disse logo: Isto é tudo uma por­caria, nós cheg­amos ali e gan­hamos aquilo tudo”.

Dois meses depois, na Ale­manha, foi ainda pior. Todos os con­cor­rentes tin­ham equipa­men­tos sofisti­ca­dos, de mar­cas exclu­si­vas, uma roupa para cor­rer, outra para o ciclismo… “Está­va­mos fasci­nadas e, mais uma vez, cheias de medo. A Vanessa declarou: Estas gajas têm a mania que andam muito, mas nós vamos dar-lhes uma coça”.

E depois com­petiu com tanta paixão que, ao pas­sar da bici­cleta para a cor­rida, se esque­ceu de calçar as sap­atil­has. Só reparou quando sen­tiu a aspereza do chão nos pés descalços. Ao vê-la chorar, Maria descalçou um dos seus ténis e atirou-lho. Ter­mi­naram a prova assim, com um sap­ato cada uma.

Em 2004, na Taça do Mundo, “a mais nova que lá estava era pelo menos 10 anos mais velha do que nós”. Mas Vanessa atrav­es­sou a meta em primeiro. “Como sabia ela que ia gan­har? Não sei como fazia. É mesmo maluca. Tem garra, é com­pet­i­tiva. Tem fome de gan­har. Ela é uma gan­hadora. Se não for no desporto, se se dedicar a outra coisa qual­quer, será sem­pre uma ganhadora”.

***

A vida no CAR era obses­siva. Treinava-se desde as 6 da manhã até às 8 da noite, todos os dias. Não havia mais nada. Tudo era orga­ni­zado em função dos treinos, dos cinco treinos diários. Todos os atle­tas dormiam em quar­tos dup­los, excepto Vanessa, que tinha um só para si. Mas era um cubículo claus­trofóbico. Depois do jan­tar, Vanessa ia ter com os cole­gas, que se reu­niam no quarto de um deles, para con­ver­sar. Mas os temas não eram muito vari­a­dos. “Falá­va­mos sobre tri­atlo”, conta o tri­atleta Bruno Pais, que esteve inter­nado no CAR entre 2000 e 2007, e hoje, aos 29 anos, vive na sua própria casa, com a mul­her e a filha, perto do Cen­tro. “O que fazíamos era comer, dormir e treinar todos os dias. Não íamos ao cin­ema nem sair à noite. Por isso os nos­sos temas de con­versa eram os treinos, os tem­pos que fize­mos, as reacções do treinador”.

Aos fins-de-semana, alguns iam a casa, mas lev­avam um pro­grama de treino rígido para cumprir. Na alta-competição não há dias de folga. “Desde que foi para Lis­boa, ela ficou difer­ente”, diz Vânia, a irmã de Vanessa. “Não que­ria saber de nada além daquilo. Não se inter­es­sava por nada, não que­ria sair à noite, não ouvia música”.

Por viverem longe, Vanessa e Bruno (que é do Fundão), ficavam muitas vezes no Cen­tro. Vanessa pas­sava alguns fins-de-semana em casa de Sér­gio, no Alen­tejo. O treinador con­sid­er­ava que era a mel­hor opção, porque ir a Per­os­inho cansava-a e perturbava-a.

Sér­gio San­tos tinha fama de ser um treinador com­pe­tente e rig­oroso, mas tam­bém frio e implacável. Não per­doava qual­quer pre­var­i­cação ou que­bra de dis­ci­plina. “Se chegava atrasado ao treino, fazia mais mil met­ros de natação, de cas­tigo”, conta Bruno. Ou se Vanessa se deix­ava dormir e não chegava à hora com­bi­nada de par­tida da car­rinha para algum local especí­fico, Sér­gio não esper­ava e fazia-a ir a cor­rer até ao local do treino.

O treinador esta­b­ele­cia uma relação intensa com os atle­tas, que simul­tane­a­mente o admi­ravam e temiam. Quando ele não ficava sat­is­feito com uma per­for­mance, nem pre­cisava de falar: os seus olhos diziam tudo. Vanessa tinha medo desse olhar reprovador de Sérgio.

“Os treinos são muitos vio­len­tos, esta­mos sem­pre nos lim­ites da resistên­cia”, diz Bruno. Vanessa queixava-se mas não deix­ava de cumprir. “Estou toda rota”, repetia ela. Mas treinava, e chegava às provas e gan­hava. “Então estavas toda rota?” brin­cavam os colegas.

Sér­gio esta­b­ele­ceu objec­tivos ambi­ciosos. Com Vanessa, que­ria gan­har tudo. Em 2003 apon­tou logo os Jogos Olímpi­cos de 2004 como meta, e depois, como a atleta tivesse obtido em Ate­nas  o 8º lugar, ainda com 17 anos, começou a tra­bal­har para Pequim em 2008.

O regime de treino era ade­quado a este fre­n­esim estratégico. Multiplicavam-se as horas de tra­balho efec­tivo, e os tem­pos livres e de des­canso eram mon­i­tor­iza­dos ao por­menor. A ali­men­tação tam­bém, ape­sar de não haver no Cen­tro um nutri­cionista nem um psicól­ogo. Às horas das refeições os treinadores obser­vavam os pratos de cada um e diva­gavam perigosa­mente sobre a cor­re­lação entre gra­mas de peso cor­po­ral e segun­dos nos tem­pos das provas.

“Se perderes um quilo cor­res mais rápido 10 segun­dos por quilómetro”, dizia o treinador, segundo Maria Are­osa. “Se a difer­ença entre ser 5º ou 1º na Taça do Mundo for de 20 segun­dos, a dis­tân­cia entre ter uma medalha ou não é de dois quilos”.

Vanessa ia cada vez menos a casa, e quando ia lev­ava uma tenda espe­cial em cujo inte­rior era cri­ada uma atmos­fera arti­fi­cial e rar­efeita para sim­u­lar os treinos em alti­tude. Para exas­per­ação de Vences­lau, a tenda era mon­tada no quarto e Vanessa dormia lá dentro.

O pai de Vanessa não con­cor­dava com nada disto. “Um atleta só a par­tir dos 25 anos é que se explora total­mente. Eu só aos 35 é que estava no auge. Gan­hei a Volta aos 39”. O “velho Lau” não andou na Uni­ver­si­dade, nem fez um mestrado em Treino de Alto Rendi­mento na Área do Tri­atlo, como Sér­gio. Tudo o que sabe, apren­deu à sua custa. No iní­cio da car­reira, comia bife com batatas fritas ao pequeno-almoço, para ter ener­gia para as provas. Com o tempo, num processo de tentativa-erro, foi apren­dendo a escol­her uma dieta ade­quada. E que, por exem­plo, não era prej­u­di­cial ter relações sex­u­ais na sem­ana ante­rior às provas.

Tam­bém quando às idades ade­quadas a cada tipo de treino ele foi tirando as suas con­clusões. “Sem­pre vi isto: os ciclis­tas que aos 15 anos já gan­havam, aos 20 já não que­riam saber da bicicleta”.

Não havia forma de Sér­gio e Vences­lau se enten­derem. O con­flito foi real, por vezes osten­sivo, e durou os nove anos que Vanessa esteve no CAR. Depois de um fim-de-semana em que Vanessa vinha a casa, Sér­gio tele­fon­ava ao pai: “O que é que você lhe faz aí, que ela chega cá abaixo e parece uma velha a cor­rer?” Vences­lau respon­dia: “Quando ela vem é para des­cansar. Um atleta pre­cisa de retem­perar forças”.

Noutra ocasião, depois de Vences­lau ter feito um comen­tário na tele­visão sobre o desem­penho da filha numa prova, foi chamado a Lis­boa para, numa reunião, ser exor­tado a calar-se, para não prej­u­dicar a car­reira de Vanessa.

Esta sentia-se divi­dida e sofria com o con­flito entre o treinador e o pai. Por isso pas­sou a optar por não vir a casa, e falar o menos pos­sível com a família. Prefe­ria pas­sar o fim-de-semana em casa de Sér­gio, o que ofendia Vences­lau e Her­mí­nia. “Eles estavam a espremê-la até à última. A aproveitar-se dela”, diz Lau. “E convenciam-na a não me dar ouvidos”.

Segundo Vences­lau Fer­nan­des, a hos­til­i­dade começou bem cedo, mal ele e a mul­her se aperce­beram de que a filha não ia à escola. “Ela não pre­cisa. Não tem tempo”, ter-lhe-ão dito da Fed­er­ação. O facto é que Vanessa nunca fre­quen­tou as aulas. De iní­cio, a Fed­er­ação justificava-lhe as fal­tas. Depois deixaram-na reprovar. Não chegou a fazer o 10º ano.

No entanto, os reg­u­la­men­tos do CAR ref­erem como objec­tivo a “for­mação plena do cidadão” e “pro­por­cionar condições para o estudo”, e esta­b­ele­cem como regra que se um atleta não tiver aproveita­mento esco­lar dois anos segui­dos será expulso do CAR. Por “aproveita­mento”, explici­tam ainda os doc­u­men­tos nor­ma­tivos do Cen­tro, entende-se pelo menos 50 por cento dos crédi­tos no Ensino Supe­rior e o tran­si­tar de ano no caso do Secundário. Ora Vanessa não tran­si­tou, durante nove anos seguidos.

“Ela não chum­bou: ela aban­do­nou”, começa por explicar José Luís Fer­reira, pres­i­dente da Fed­er­ação de Tri­atlo. “Bom, chum­bou por fal­tas”. Não ia às aulas, por causa do treino. Mas isso deveu-se, segundo o respon­sável da Fed­er­ação, “à falta de apetên­cia da Vanessa pelo estudo. Ela já não ia às aulas antes de vir para cá. Alertei os pais para a situ­ação e eles respon­deram que não fazia mal. Assumi­ram o ónus do problema”.

Vences­lau e Her­mí­nia garan­tem que Vanessa sem­pre foi à escola e foi boa aluna. José Luís, por seu lado, lem­bra que todos os out­ros atle­tas do CAR con­tin­uaram os estu­dos, excepto Vanessa e Bruno. “A Vanessa foi difer­ente, por respon­s­abil­i­dade dela”, aponta. E dá exem­p­los de vários atle­tas de Alto rendi­mento que fre­quen­tam ou con­cluíram cur­sos supe­ri­ores. É o que acon­tece com a sua própria filha. “Já o meu filho mais novo não gosta nem quer estu­dar, mas eu obrigo-o”.

No caso de Vanessa foi con­sid­er­ado prefer­ível aban­donar a escola. “Tinha pouca apetên­cia para estu­dar. O que lhe restava era o tri­atlo. Optou por fazer car­reira no tri­atlo”. E a Fed­er­ação apoiou-a nessa decisão pes­soal e madura, fazendo tábua rasa das suas próprias regras.

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É con­sen­sual entre os cole­gas e treinadores que Vanessa sem­pre teve difi­cul­dade em tomar decisões de forma autónoma. “Ela é o tipo de atleta que pre­cisa de alguém sem­pre ao pé, para incen­ti­var”, diz Bruno Pais. “Não é muito autónoma. Para fazer os seus treinos pre­cisa  do treinador perto, a con­tro­lar tudo”.

Maria Are­osa recorda um dia em que, em Ate­nas, con­hece­ram um treinador espan­hol muito famoso, que andava sem­pre nas capas das revis­tas. Ficaram ambas embeve­ci­das, mas foi Maria quem foi ter com ele, pedindo-lhe para a treinar. Vanessa ficou estar­recida. “Ela nunca seria capaz de tomar aquela ini­cia­tiva. Pre­cisava de se sen­tir segura”. Nunca faria nada con­tra a von­tade dos seus treinadores.

Maria fazia provas fora dos cir­cuitos ofi­ci­ais, em vários países, só pela aven­tura. Par­ticipou numa no Méx­ico e depois ficou lá de férias. Uma vez, par­tiu de carro, com o namorado, e ia par­tic­i­pando em provas, em vários países, para gan­har din­heiro para a viagem. Enquanto ficasse nos primeiros lugares, con­tin­uar­iam. Se perdesse teriam de regressar.

Vanessa, diz Maria, ficava fasci­nada com estas ini­cia­ti­vas. Mas nunca seria capaz de as tomar. Era demasi­ado depen­dente. “Fazia tudo o que lhe man­davam, e gan­hava sem­pre. Por isso pen­sava que estava no cam­inho certo, e con­tin­u­ava a obe­de­cer. Ela con­fi­ava. Nos pais, nos treinadores, desde os 16 anos. E como tinha êxito, con­tin­u­ava a con­fiar”. Mas isso, con­sid­era a amiga, “é con­se­quên­cia da sua edu­cação desportiva. Sem­pre foi assim, já com o pai”.

Sér­gio San­tos não des­mente que Vanessa é uma atleta pouco inde­pen­dente. “Ela pre­cisa de um treinador sem­pre ao lado. Mas não é para a picar. A função do treinador era fazer com ela se con­tro­lasse, andasse mais devagar”.

Sér­gio, que em Junho do ano pas­sado deixou a Fed­er­ação e o CAR do Jamor, é agora téc­nico do Cen­tro de Preparação Olímpica de Rio Maior, que per­tence a uma empresa munic­i­pal, a DESMOR. Atle­tas de difer­entes países vêm para aqui de propósito para tra­bal­har com ele.

“Eu uso 6 veloci­dades difer­entes”, diz ele aos nadadores antes de mer­gul­harem na piscina. “Cada um sabe a veloci­dade a que tem de nadar, de acordo com o que está escrito no quadro”. Para um grupo da selecção olímpica brasileira, que acaba de chegar, explica: “…a 3 é a veloci­dade para dis­tân­cias lon­gas. A 4 e a 5… A 6 é a veloci­dade máx­ima, para dis­tân­cias muito cur­tas, da ordem dos 25 met­ros”. Os atle­tas desa­tam a fazer pisci­nas e Sér­gio vai-os infor­mando, em por­tuguês ou inglês, dos tem­pos que fiz­eram. “O impor­tante não é dar o máx­imo. É cumprir os tem­pos da zona 4”.

Este tipo de con­trolo não era fácil com Vanessa, porque ela que­ria sem­pre dar o máx­imo. “Ao con­trário dos desportos colec­tivos, em que não se nota tanto a difer­ença, nestes desportos indi­vid­u­ais há uma relação muito directa entre tra­balho e resul­tado desportivo”. O atleta sabe que tudo depende dele, e, se está muito empen­hado nos objec­tivos, pode ter tendên­cia para igno­rar os seus próprios lim­ites. Cabe ao treinador não o permitir.

“Quando íamos cor­rer, ela começava logo a dar o máx­imo, e não abran­dava”, conta Maria. “Ninguém aguen­tava. Eu dizia-lhe: ‘Sem­pre à morte, Vanesa? É pre­ciso cor­rer sem­pre à morte?’ Mas ela con­tin­u­ava. Sem­pre ali, no lim­ite das forças. ‘Então Vanessa? Sem­pre à morte, sem­pre à morte’”.

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Na modal­i­dade do tri­atlo, Vanessa Fer­nan­des é uma das mel­hores atle­tas do mundo, de todos os tem­pos. Talvez mesmo a mel­hor. “Ela tem qual­i­dades de grande resistên­cia”, diz Sér­gio. “É exce­lente do ponto de vista fisi­ológico e psi­cológico. E tem com­pet­i­tivi­dade muito grande. Há atle­tas que nunca chegam a fazer, em com­petição, tem­pos tão bons como nos treinos. Ela não é assim. Quando se aprox­ima das com­petições, mel­hora. Trans­forma o ner­vo­sismo em prestação. Tem um per­fil de ataque”.

Sér­gio garante que sabe dis­tin­guir os atle­tas à primeira vista. “À par­tida, alin­ham no pon­tão umas 70 atle­tas. São todas sen­sivel­mente da mesma altura, entre 1m60 a 1m75. Mas ali já se vê. Há umas que pare­cem ter 2 met­ros. Vê-se pelo olhar, pela forma como alin­ham, como se estim­u­lam, dando pal­madas nas per­nas. Há as que sabem que vão gan­har. Vanessa é assim”.

Bruno lembra-se da “garra” e da “von­tade de tra­bal­har” de Vanessa. “Ela treinava com os rapazes, porque o anda­mento dela era equiv­a­lente ao nosso. Ela sem­pre deu o seu mel­hor. E achava nat­ural gan­har. Con­sid­er­ava uma der­rota ficar em segundo”.

Para Maria, ela “é uma per­fec­cionista. Procu­rava a per­feição. Por isso não fazia mais nada. Tem uma força imensa. É uma refer­ên­cia para mim”. Paulo Colaço, o actual treinador, vê em Vanessa o “mod­elo per­feito” de atleta, que con­juga “boas car­ac­terís­ti­cas fisi­ológ­i­cas, derivadas do património genético”, com traços psi­cológi­cos exem­plares. “Ela é per­sis­tente, focal­iza os objec­tivos”, e pos­sui uma imensa “capaci­dade de super­ação. É uma caix­inha de surpresas”.

Licínio Pimentel, corre­dor de estrada de fundo e meio-fundo, que se treinou com Vanessa quando ela regres­sou ao Porto, classifica-a como “uma máquina de guerra”. Não se cansa, tem uma capaci­dade de sofri­mento fora do nor­mal e aquela ati­tude incon­fundível, “de guer­reira”, a cor­rer a a andar de bicicleta.

Paulo, que afirma recon­hecer cada um dos seus atle­tas de olhos fecha­dos, só pelo som dos pés a bater no chão, diz que Vanessa “tem um con­tacto suave e elás­tico com o solo”. Mas é a sua pos­tura na bici­cleta que a torna iden­ti­ficável entre mil­hares. “Na bici­cleta, ela transforma-se, é outra pes­soa. Não aquela rapariga frágil. Enrola os ombros para a frente, fica assim cor­cunda, naquela posição nada fem­i­nina”, descreve Licínio com admi­ração. “Geral­mente as mul­heres não andam assim de bicicleta”.

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Com estas car­ac­terís­ti­cas, em 2006, aos 21 anos, Vanessa gan­hara mais medal­has do que qual­quer outra atleta da sua idade. Quando chegava a uma prova, todos esper­avam que gan­hasse, e isso fez nascer nela um sen­tido de respon­s­abil­i­dade. Não podia perder. E não per­dia. Mas a pressão foi crescendo. Tinha à sua volta os jor­nal­is­tas, os patroci­nadores, os treinadores, a família, o país inteiro. Ela não podia decep­cionar. Era pre­ciso fazer mais. Havia o Campe­onato do Mundo, os Jogos Olímpi­cos. Os objec­tivos eram cada vez mais ambi­ciosos, desmesura­dos. Era pre­ciso ser a mel­hor do mundo.

Vanessa superava-se. Estava cada vez mais em forma, cada vez mais ráp­ida, cada vez mais magra. E adoe­ceu. “Eles pre­cisam das medal­has, por isso não recon­hecem que uma pes­soa está doente”, diz Maria Are­osa. “Ela era a gal­inha dos ovos de ouro”.

Pub­li­ca­mente, não recon­hece­ram. Mas, segundo o pres­i­dente da Fed­er­ação, detec­taram a doença, em 2006. Con­tac­taram o médico do Ben­fica, e “Vanessa começou a ser tratada com as estru­turas médi­cas da Fed­er­ação”, diz José Luís Fer­reira. “Foi assis­tida por uma equipa médica. Mas foi um fra­casso”. Depois, “ela quis um psiquia­tra. Mas tam­bém não resultou”.

Man­tiveram o prob­lema em seg­redo, e Vanessa con­tin­uou a par­tic­i­par em todas as provas, como se nada se pas­sasse. Nesse mesmo ano de 2006 gan­hou 11 com­petições, entre as quais seis Taças do Mundo. Em 2007 venceu a clas­si­fi­cação global da taça do Mundo, em Ham­burgo. Nunca tra­bal­hara a um ritmo tão intenso. “Vanessa com­petiu em Pequim e nas provas ante­ri­ores já doente”, diz o pres­i­dente da Federação.

“Segundo os médi­cos, a doença não foi provo­cada pela prática desportiva, mas era poten­ci­ada por ela”, admite José Luís Fer­reira. E no entanto não houve qual­quer abran­da­mento dessa prática. Vanessa começou a deixar de ter von­tade de com­pe­tir, mas não a deixaram descansar.

“A doença era evi­den­ci­ada por fac­tores de pressão”, diz o pres­i­dente. A pressão a que Vanessa estava cada vez mais sub­metida, pelas provas cada vez mais impor­tantes a que con­cor­ria. Pelos media, pelos patroci­nadores, pelos fãs, e pela obri­gação de ganhar.

“Nós entrá­mos no tri­atlo porque éramos boas, e alguém nos man­dou para ali. Não foi pro­pri­a­mente uma opção”, diz Maria, que em 2004 decidiu aban­donar o desporto, durante 4 anos. “Eles sem­pre acharam que ela ia aguen­tar, porque ela gan­hava sem­pre”. Mas acres­centa: “Chega uma altura em que é mais fácil con­tin­uar do que desistir”.

Vanessa con­tin­uou. “Ela é única, é de outro mundo”, diz José Luís. “Não con­heço ninguém com a mesma capaci­dade de inverter uma situ­ação, em horas. Em 2007 ela estava de gatas. Estive­mos quase para can­ce­lar a sua par­tic­i­pação. Mas depois…”

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2008 era a grande data. Uma medalha de ouro em Pequim era o sonho de todos, desde o iní­cio. Incluindo o de Vanessa, que, desde os nove anos, dormia com um póster de Rosa Mota no quarto. Agora, já não tinha von­tade de lutar por esse sonho, mas fazia-o em nome dos out­ros, dos portugueses.

Nos meses ante­ri­ores aos Jogos, sucederam-se os desaires. No Campe­onato do Mundo, em Van­cou­ver, ficou em 10º, ale­gada­mente por causa da água fria, e na etapa de Ham­burgo desis­tiu, dev­ido a uma suposta intox­i­cação ali­men­tar, depois de tam­bém ter desis­tido em Pon­teve­dra, por risco de hipotermia.

Os diri­gentes da Fed­er­ação sabiam que Vanessa estava pior, que o seu prob­lema se agravava, e, em Pequim, tomaram medi­das. Não a insta­laram na aldeia olímpica, como seria nor­mal, mas numa vivenda que arren­daram em Chang­ping, a 30 quilómet­ros de Pequim e a 500 met­ros do local da prova. Ficou ali iso­lada de toda a con­fusão, na com­pan­hia dos pais, con­vi­da­dos pela Fed­er­ação. “Ao tirá-la da aldeia olímpica, livramo-la de toda a pressão”, explica José Luís. “Para criar as mel­hores condições, e para que ela pudesse mostrar todo o seu potencial”.

Havia grande expec­ta­tiva em relação a um certo número de atle­tas por­tugue­ses. Mas os primeiros dias da sua par­tic­i­pação foram decep­cio­nantes. Não houve medal­has. Telma Mon­teiro e Jes­sica Augusto não gan­haram. O lançador de peso Marco Fortes disse que “de manhã só é bom é na cam­inha”, para jus­ti­ficar o seu 38º lugar. A última esper­ança era Vanessa Fernandes.

“Depois dos jogos, não sei o que vai ser a minha vida”, disse ela à mãe, antes da prova.

“Já fizeste o que muito atle­tas nunca con­seguiram, não tens de provar mais nada a ninguém”, respon­deu Her­mí­nia. Sabia que a filha tinha de parar. Mas não tinha cor­agem para lho dizer clara­mente. Ninguém tinha. “Como podia dizer alguma coisa?” con­fessa Vânia. “Se depois ela fal­hasse eu seria con­sid­er­ada responsável”.

Vences­lau sen­tia o mesmo. Quem era ele, para prej­u­dicar uma car­reira daque­las? “Tu és uma medalha olímpica. Não posso ser eu a treinar-te. Porque se depois os resul­ta­dos não apare­cerem dizem que a culpa foi do pai”.

Vanessa despediu-se dos pais e par­tiu para a prova. “Que o Espírito santo te ajude a con­seguires o que queres”, disse Her­mí­nia. “Ele vai-me aju­dar”, respon­deu Vanessa, “mas eu tam­bém tenho de querer”. E lá foi, magrinha, os pés a voar sobre o solo num con­tacto suave e elás­tico, cor­cunda em cima da bici­cleta, com o peso de um país inteiro sobre os ombros enro­la­dos para a frente.

“É prata, mas para mim vale ouro”, disse à mãe quando voltou. E à irmã con­fes­sou: “Eu gan­hei esta medalha mas não mere­cia. Havia out­ros que a mere­ciam mais”.

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Depois dos Jogos, Vanessa perdeu com­ple­ta­mente a von­tade de treinar e com­pe­tir. Nunca mais gan­hou nen­huma prova. Nunca mais ter­mi­nou nen­huma, aliás. Con­fes­sou mais tarde que fez treinos de duas horas de bici­cleta a chorar do princí­pio ao fim. Cor­rer, nadar, andar de bici­cleta tornaram-se num sacrifício.

Mas a frus­tração pelos insuces­sos levava-a a querer con­tin­uar. Sér­gio diz que ten­tou convencê-la a não ir a cer­tas provas, mas ela insis­tia. O treinador quis tam­bém que ela com­prasse uma casa em Lis­boa, para sair do CAR, mas isso não foi bem visto pela família.

Em 2009, Vanesa acabou por decidir regres­sar ao Norte. Depediu-se do Cen­tro do Jamor e de Sér­gio San­tos. Voltou a casa, para tra­bal­har com o pai. Vences­lau con­tac­tou Paulo Colaço, pro­fes­sor na Escola Supe­rior de Desporto, de quem tinha boas referências.

“Se um atleta tem como objec­tivo ape­nas ren­der a curto prazo, eu não aceito tra­bal­har com ele”, diz Paulo, que con­dena a filosofia de treino apli­cada pela antiga equipa téc­nica de Vanessa. “Depois dos Jogos, ela devia ter parado. É pre­ciso desen­har cic­los de treino, de 4 anos. Provo­car abaix­a­m­en­tos de forma, proposi­tada­mente. Porque se o abran­da­mento não for provo­cado, ele sur­girá nat­u­ral­mente. Há atle­tas que deix­amos de ver, durante um período”. Regres­sam à forma máx­ima e à rib­alta pouco antes das provas que decidi­ram dis­putar. “Há até mul­heres que deci­dem inter­romper a car­reira desportiva para ter um filho, e depois regressam”.

Além desta abor­dagem, Paulo Colaço atribui ainda grande importân­cia ao fac­tor humano no treino dos atle­tas. Não basta preocupar-se com o treino físico. O treinador deve tam­bém ter sob con­trolo os fac­tores famil­iares, soci­ais e psi­cológi­cos do atleta.

Quando ini­ciou o tra­balho com Vanessa, Paulo desen­hou uma árvore, que vai com­ple­tando, cujos ramos eram as várias ver­tentes do seu prob­lema. Teve reuniões com os pais, com ami­gos. Acha que nen­huma fac­eta da vida de Vanessa lhe deve ser alheia.

O método pare­cia estar a resul­tar. Vanessa ainda obteve um resul­tado sat­is­fatório no campe­onato de Madrid. Mas era uma ilusão. Vanessa começou a fal­tar aos treinos. Inven­tava des­cul­pas. Dizia a Paulo que estava com o pai, e a este que estava com Paulo. Na ver­dade, saía de carro de manhã e vagueava soz­inha até à noite.

Para ten­tar divertir-se, começou a sair à noite, com a irmã. Mas Vânia perce­bia que ela não estava bem. Não tinha ami­gos. Cor­tou com os de Lis­boa, e não voltou a con­tac­tar os anti­gos, de Per­os­inho. “Ela que­ria sair comigo e os meus ami­gos, para dis­farçar o mal-estar. Que­ria distrai-se, mas estava com­ple­ta­mente desorientada”.

Vânia tornou-se sua con­fi­dente. “Não quero mais o desporto”, dizia-lhe Vanessa, a chorar. “Eu já não ando a fazer isto por nada nem por ninguém. Só quero ser uma pes­soa nor­mal, ter um emprego normal”.

As duas, com os ami­gos de Vânia, iam aos bares de Santa Maria da Feira, à dis­coteca 4Ever Club ou ao Biba la Noche. Vanessa exager­ava no álcool. Bebia de forma incon­tro­lada, mas não se diver­tia. Numa dessas noites, con­heceu H. Apaixonou-se e pas­sou a namorar com ele. Nunca mais saiu com a irmã. Pas­sava os dias e as noites com o namorado, numa relação que Vânia e o resto da família con­sid­er­avam obses­siva e pouco saudável.

Vanessa e H. decidi­ram associar-se para com­prar o bar onde ele tra­bal­hava. Depois a relação deteriorou-se e o negó­cio tornou-se um prob­lema para Vences­lau resolver.

No iní­cio deste ano, após reuniões de Paulo Colaço com a família e respon­sáveis da Fed­er­ação de Tri­atlo, Vanessa anun­ciou o afas­ta­mento da vida desportiva. Decidiu tratar o seu prob­lema de saúde e a fed­er­ação apoiou-a. Foi encon­trado um psiquia­tra, depois outro. A insti­tu­ição onde se encon­tra actual­mente é a quinta ten­ta­tiva de solução, segundo José Luís Fer­reira. Reuniu-se uma equipa mul­ti­dis­pli­nar de 20 pes­soas, paga com um fundo do Comité Olímpico. O din­heiro da bolsa que estava afec­tado à preparação de Vanessa para os Jogos Olímpi­cos foi, com o acordo do Secretário de Estado da Juven­tude e Desporto, con­ver­tido num fundo de recu­per­ação da atleta, no valor de 47 391 euros para este ano de 2011.

“O psicól­ogo respon­sável assegurou-me que a doença é genética, e que a Fed­er­ação não tem por­tanto qual­quer respon­s­abil­i­dade”, diz José Luis Fer­reira. “Cul­pa­dos somos todos: ami­gos, família, Fed­er­ação, Comu­ni­cação Social”. Mas “trata-se de o paga­mento de uma dívida. O país deve muito a Vanessa e tem a obri­gação moral de a ajudar.

Vanessa está a treinar para os Jogos Olímpi­cos, mas isso não é condição para que ajuda con­tinue, asse­gura José Luís. “Não será pos­sível recu­perar a atleta sem recu­perar a pes­soa, mas pode-se recu­perar a pes­soa, sem a atleta”.

Neste momento, Vanessa está iso­lada, sub­metida à autori­dade, sem vida própria, depen­dente, a tra­bal­har para mais uma medalha. “Sem­pre foi assim”, lem­bra Maria. “Sem­pre a iso­laram, sem­pre viveu numa bolha. Per­gun­tá­va­mos pela Vanessa e diziam que estava a descansar”.»

FONTE: Público

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